domingo, 12 de abril de 2009

2003 | Falam as partes do todo?

Esta pergunta me veio à cabeça quando um professor me falou sobre duas formas possíveis de ver a vida - pela perspectiva da floresta ou pela perspectiva da árvore. Acho que durante boa parte da minha vida eu enxerguei pela perspectiva da floresta, perseguia a idéia de unidade, de leis com garantia universal. De uns tempos prá cá o mundo foi acabando com as florestas e acho que fui perdendo minhas garantias. Não sem desconforto, quase todos os dias me confronto com o desejo de saber o que é certo ou errado para guiar meus atos. Viver sem certezas é viver na insegurança, em movimento constante de reaprendizagem.
Um dia me chegou às mãos uma reportagem do dia 23 de novembro de 2001, onde o presidente Bush fazia um ultimato à população mundial: “ou estão do nosso lado ou do lado dos terroristas”. Me pareceu ainda mais urgente refletir sobre esta forma fundamentalista de ver o mundo como uma
realidade bidimensional. Esta forma de ver que estabelece uma perspectiva parcial como a melhor, senão a única; que pretende encerrar o significado das coisas; que vê as versões como fatos, as partes como todo. Esta forma de ver que nos tenta com suas certezas, generalizações, explicações definitivas e fórmulas infalíveis.
Quando conhecí o trabalho da Tatiana Grinberg, achei que ele falava ao corpo/do corpo de forma aberta, ambígua e caminhava no sentido destas mesmas inquietações. Desta parceria e do encontro com os bailarinos nasceu este projeto, fruto de indagações sobre corpo e espaço como realidades que se constroem em relação.
Dani Lima

concepção e direção: Dani Lima
criação: Alex Cassal, Clarice Silva, Dani Lima,
Edney D’ Conti, Monica Burity, Rodrigo Maia,
Vinicius Salles, Vivian Miller e André Masseno
objetos: Tatiana Grinberg
assistente de direção: Alex Cassal
trilha sonora original: Felipe Rocha e Lucas Marcier
direção musical: Felipe Rocha
figurinos: Valéria Martins
iluminação: Paulo César Medeiros
consultoria dramatúrgica: Mônica Prinzac


Meus trabalhos acontecem como fluxo, processo e experimentação; constroem-se como uma rede de contatos entre corpos, objetos, textos e ambiente, através de situações de reconhecimento/estranhamento. E numa sucessão de potencializações/anestesias do sensível, intrincações de tempos, uma multiplicação das tensões espacializantes, buscam uma nova corporiedade. Interessam aqui as interações, migrações, as transformações ocorridas, as trocas, as marcas. Quando a Dani me convidou para um projeto em conjunto, foi sugerida a criação de uma obra especialmente para o espetáculo, sendo este baseado na discussão de certas idéias ligadas à minha pesquisa - experência sensorial, reflexividade, espacialidades ambíguas, troca de lugar entre observador e observado; e em temas como identidade e autoria, de interesse de sua cia; além das questões comuns a nós duas - como o uso sentido da propriocepção, a fragmentação dos corpos, a preocupação com presença de um espectador-participante no espaço em cena, a requisição da sua memória/esquecimento, movimentação/interação deste espectador, o uso de textos, etc. O mais interessante desta mistura é fato do espetáculo apresentar alguns objetos que partiram de temas e demandas específicos dos bailarinos e com os quais eles interagem numa dança sutil, assim como movimentos sem quaisquer objetos que nasceram de conceitos ligados ao meu trabalho de artes plásticas.
Tatiana Grinberg

Falam as partes do todo? O todo não é nunca a soma das partes, é mais que isso. As partes podem ser tudo. A palavra e o corpo são sempre parte e são sempre o todo. Um torso de Apolo é uma parte ou é um todo? Como se passa do movimento para a dança? Onde termina o corpo e começa o espaço? A escultura e a dança inventam o corpo. A escultura e a dança inventam o espaço. Deslocar. Pesar. Atravessar. Separar. Juntar. Distanciar. Aproximar. Tocar. Andar. O espaço não está lá fora, diante de nós, ele não nasce como figura geométrica. Ele se desenha cotidianamente a partir do movimento do nosso corpo e da vivência de nossos gestos. Mais do que uma relação entre dança e escultura, o que vemos neste espetáculo é um deslocamento de linguagens, uma metamorfose do corpo em escultura e da escultura em fragmentos orgânicos. Não há uma coreografia e uma cenografia, há corpos, formas e espaços que se reinventam a cada movimento de quem dança e de quem vê e circula. As esculturas da Tatiana existem através da dança, assim como o desenho coreográfico da Dani se fragmenta e se desdobra através dos cortes e dos buracos das peças escultóricas.
Falam as partes do todo? Temos palavras para expressar o corpo? Podemos ver sem palavras? “Há coisas de sobra que não se dizem / há coisas que sobram no que se diz / nossa miséria é
uma alegria de palavras?” Um olhar, um gesto, um sim, podem significar tudo e nada – a situação e o momento produzem a diferença.
Luiz Camillo Osório

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